domingo, 6 de março de 2011

Vizinhança Pertubada

Era aquela casa. Sim, eu sabia. A voz no telefone me contou, tudo certinho, nos mínimos detalhes. Casa amarela, telhado caindo aos pedaços, na Rua Rosa.

Bati. Três toquezinhos pausados. Era a senha.

Veio uma moça. Moça bonita que você nem imagina. Pele branca como nata, um corpo delicado e generoso, rosto suave e com uma ruguinha na testa. Achei bonita. Só não gostei do cabelo. Ruiva.

Entrei. Entrei satisfeito, porque lá fora estava um toró de alagar.

Fiquei calado enquanto a moça bonita ia na cozinha buscar um chá, quando ela voltou, me mandou sentar no sofá.

Peguei o chá. Chá quente é gostoso em dia de chuva forte. Melhor ainda quando tem uma moça bonita na sua frente. Pena que puxou um cigarro da bolsa e começou a fumar. Empesteou o ambiente.

A moça começou a falar. Eu não entendia nada, tava prestando atenção nas curvas dela, embora o falatório me desse a impressão que ela fosse muito mais velha do que aparentava, e eu não ia perguntar quantos anos ela tinha. Ah, não ia, porque me falaram que é falta de educação. Mas quando ela veio me perguntar quem era eu, respondi que era o Fábio, que ela não precisava se preocupar porque eu não mordia, que eu era só mais um nesse mundão de Deus. Que eu fora ali pra falar com ela, contar meu caso, e ela contar o dela. Só queria um pouco de prosa.

A moça disse que tudo bem, então começou a falar e então eu prestei atenção e as curvas dela não me interessavam mais. Eu queria as histórias da moça.

“Bom Fábio... é Fábio né?... Bom, Fábio, vou te contar a minha história da Rua Rosa, desse Bairro das Hortências, e dos negócios que de vez em quando aparecem por aqui. Você tinha me ligado né?... Como é que conseguiu meu número?”

Falei que o número dela era conhecido de todo mundo por lá, até de você, não era? O número mais simples por aí: 0000-0001. Falei também que se ela conta o número pra alguém, vem mais gente, sim, ah se vem! Vem gente até de fora do bairro pra ver a Dona... Dona o quê mesmo?

“Dona Rosa.”

Dona Rosa? Então era o mesmo nome da rua! Pois então, vem gente até de fora pra ver a Dona Rosa, e eu vim porque alguém disse pra mim, que a Dona Rosaentende muito bem as coisas, ela sabia até porque que dava chuva, e ela conhecia tudo o que se dava pelo bairro. Tinha lá seus jeitinhos de conseguir saber. Mas eu não sabia. Por isso que eu vim, não vim? Eu vim pra saber. Pois então, Dona Rosa, comece a soltar o que você sabe.

“Pois bem, você sabe o Mário? Não? Pois então, deixa eu falar. O Mário é um velhinho que mora na Rua Rosa desde sempre. Nunca sai, nunca faz nada, e é aposentado, ainda por cima. Ganha também com doações, as quais ele gasta em cassinos. O coitado ainda tem uma esposa, uma mulher com um quarto da idade dele. Enquanto ele tem oitenta e tantos, ela tem vinte e poucos. Ele é terrível. Pessoa vergonhosa, que mancha nossa história. Ela é muito boa. Um amor de pessoa, já veio aqui me perguntar se eu estava bem infinitas vezes, me ofereceu lanches, já fizemos piquenique. Já vou te contar o que o Mário fez com a coitadinha da Vivi. Ah, é, esqueci de contar, o nome dela é Viviane.”

“Mas antes vou te falar desse pessoal que mora na rua. Já conhece o Mário e a Vivi, mas espera só que eu vou buscar mais chá e você não sai daqui, hem? Espera que te conto o resto.”

E a moça saiu, eu ouvia a Dona Rosa lá remexendo nas coisas da cozinha e derramando do bule o chá para a xícara. Enquanto isso fiquei pensando no que o Mário poderia ter feito. Ele parece um cara tranqüilo, mas você não sabe o que ele fez, nem eu. Que que será que aconteceu, pra Dona Rosa ficar desse jeito? Não sei, não sei, só sei de uma coisa: Não confio nesse Mário, não. Quanto à Vivi, será que ela fez alguma coisa, já que ela parece tão inocente? Pra mim, gente inocente é normal, mas INOCENTE DEMAIS tem alguma coisa na muamba. Ela tá nessa história, aposto. Mas a Dona Rosa está voltando.

“Já te falei do Neto? Ah é, eu falei foi do Mário. Mas o Neto também é outro que só faz besteira. A mulher dele, a Mariane, é literalmente um cão chupando manga, o Neto chupou a manga e deu o bagaço pros amigos. A “bagaceira” sai com os primos do Neto a troco de grana. Pois é isso. Além dela ser uma vendida, ainda temos o Edu, o Eduardo, aqui do lado – e apontou pra parede do lado esquerdo – que é comerciante. Secretamente ele contrabandeia folhas de coca da Colômbia, faz a cocaína por aqui, usando como fachada a Homus & Húmus, a empresa de jardinagem dele, com produtos masculinos. Você nem imagina o trabalho que eu tive pra descobrir isso. Tive que invadir a casa dele pra ter certeza. É, estou velha mas ainda consigo arrombar uma porta de carvalho e desligar o alarme antes de chamar a atenção de alguém.”

Pô, agora fiquei confuso. Nessa rua só tem cinco moradores, e quatro casas. O tal do Mário e a Vivi moram em uma, a da esquina da Rua Margarida com essa Rua Rosa. Essa aqui é a da frente, na Rua Rosa com a Margarida, também. A do lado esquerdo é a do Edu, que também fica em esquina, a esquina dessa Rua Rosa com a Rua das Hortênsias. E a de frente pro Edu é a do Neto. Ah, entendi, mas ainda quero saber o que que esses caras fizeram. Vou ver o que a moça me diz agora, mas a moça falou que ela era velha. Isso está me atormentando desde que eu vi a Dona Rosa. Quantos anos ela tem? Ela é muito bonita, e boa de papo também, mas – Raios! – quantos anos será que ela tem? Eu preciso saber, senão vou ficar louco, aí a velha vai ficar falando sozinha porque eu vou levantar e sair da casa, e é bem possível que eu me roa de remorso por deixar uma velha falando sozinha.

“Bom, já vou te falar do Mário. Te disse que ele joga nos cassinos, não disse? Pois bem, ele, viciado do jeito que é no , perdeu tudo, a casa, o carro, o cachorro, as ações, até a mulher – a ex-mulher, a anterior da Vivi. Porque essa mulher, a Dani, largou-o e ainda deu jeito de tomar o que sobrou dele – a herança da mãe – nos tribunais.”

“Assim, lá estava o Mário, sem nada, pedindo esmolas na rua, e a Vivi, boa como é, levou ele pra sua casa, bem aqui, na Rua Rosa. Antes da Vivi e antes das esmolas, com a Dani, o Mário morava em Copacabana. Esse homem – bobo não é – deu jeito de ir, com calma, pouco a pouco, tomando o que era da Vivi, com muita persuasão, até que chegou num ponto em que ela não tinha mais nada e ele tinha tudo o que era dela – e assim ele recuperou a casa, o carro, o cachorro – e ainda ganhou uma mulher de bônus (ainda mais bonita que a primeira, só para constar.”

“Mesmo depois tomar tudo o que era dela, o mostro não ficou satisfeito, ainda fez ela ficar ‘sob controle’: prendendo-a, Mário a mantém dentro de casa, não deixa ela sair, nem ligar pras autoridades, nem dar um telefonema. Para os amigos ela morreu. Ela só veio aqui um dia, por minha causa. Sempre que posso, vou lá e solto ela – já mencionei que eu sei arrombar casas sem disparar o alarme? – e daí vêm todas as nossa saídas juntas, embora eu já tenha dito a ela para fugir, e a medrosa não foge, tem medo do marido. Essa é a história do Neto e da Vivi.”

Mas que história complicada, poxa. Você entendeu? O cara perde tudo no jogo, depois vai mendigar, é recolhido por uma mulher, tira tudo dela e a mantém presa. O homem é um sociopata invicto. Ninguém que eu conheça é melhor que ele.

Pô, mas nessa vizinhança tem de tudo, Dona Rosa. Tem mais alguma coisa que eu possa saber?

“Ah, tem muitas, Fábio! Deixe-me relembrar as histórias.”

A velha (nem tão velha) fechou os olhos e ficou em silêncio. Depois de dois minutos eu não estava entendendo mais nada. Ela apagou? Morreu? Tomou um calmante forte demais? Que que aconteceu com a Dona Rosa?

Olhei em volta para observar o lugar. Gostei. As paredes eram de tijolos vermelhos, com telhado marrom. Tinha um monte de incensos distribuídos pela sala. O impressionante é que eu só notei que o sofá era vermelho agora.

Levantei e fui dar uma volta. Vi a cozinha, de cerâmica azul-escuro com bancada de inox, mesa de madeira e cadeiras desparelhadas, com louça também desordenada e de cores e estilos variados.

Vi também o banheiro, de cerâmica trabalhada em verde, com o vaso preto e a pia em amarelo. A casa toda era basicamente estes cômodos, excluindo os quartos, que eu não ousaria explorar sozinho.

Quando voltei à sala, Dona Rosa estava acordando de seu transe. Pelo visto, relembrara muitas coisas, pois já acordou falando o resto das histórias.

Não peguei tudo o que ela disse, mas o que eu lembro estou contando aqui:

“... Pois é isso, meu filho. Agora vou te contar do Neto. Ah, o Neto, o maldito Neto. Esse aí não é flor que se cheire não, amigo. Quando era pequeno, eu via ele roubar dinheiro da mãe, mas não falei nada, e não falei nada até hoje. Mas vou contar a história, gostando ou não.”

“ Com quinze anos, o diabo do Neto já era trombadinha e vândalo. Trombadinha não, já era mais, já ouvi falar que ele roubou uma senhora que saiu do teatro, depenou ela de todos os diamantes e saiu gargalhando. O desgraçado ainda pichava todos os muros que via pela frente, não deixava só um ‘liso’.”

“Pior ficou quando conheceu Mariane. Numa festa escolar, na roda de álcool e drogas, com dezesseis ele a conheceu. É, ela tinha quantos mesmo? Uns 14? Sei lá, mas o que eu sei é que já tinham rumores. Naquela época já diziam que ela era uma vendida, que qualquer um com cinquentão no bolso tinha ela por duas horas.”

“Bom, no final ele ficou com ela – por duas horas, diga-se de passagem – e aí os dois ferraram no namoro. Namoro não. Vício compartilhado, porque já diziam os amigos deles que os dois aspiravam mais que aspirador de pó. Pois é, o negócio estava brabo daquele jeito.”

“Pior de tudo foi que quando o Neto ficou ‘de maior’, como diz ele. Largou a Mariane – não que isso tenha sido algo ruim – e saiu bebendo a céu aberto, fumando todo tipo de cigarro, inclusive depois que conheceu o Edu, que arrumava também maconha, e garantia uns ‘descontinhos pros amigos’.”

“Mas no final todo canalha tem sua lição, né? Foi parar no pronto-socorro, de overdose, e quando a única a ir visitá-lo lá foi a Mariane, viu que estava no fundo do poço mesmo. Tentou largar as drogas, não conseguiu, e no final os dois continuaram juntos, mas ainda aspirando que nem aspirador de pó, sem parar nem um minuto. Por isso quase nunca saem. Se você olhar a janela, muito provavelmente vai ver ambos no tapete da sala, agachados em frente à mesinha, com canudos no nariz e um pozinho branco aos montes em papelotes. Se bobear, eles não comem, cheiram.”

“Mas enfim, o que eu odeio com todas as minhas células desse velho corpo, são vendidas. E a Mariane devia ser coroada Rainha das Vendidas. Dá pra qualquer um, em qualquer hora, desde que lhe deem um daqueles papelotes. É, não é mole não. Aquele canalha do Neto ainda deixa, passa pros amigos e primos, porque todo mundo perto do Neto tem a ver com o tráfico, já te falei isso? E aí, todo mundo que fica com a Mariane dá alguns daqueles papelotes. É como um comércio de trocas. ‘Mariane por um papelote’.”

“Agora só falta o Edu, que é rapidinho. E como está entardecendo, vou só te falar rapidinho, porque detalhadamente não dá. O tempo acabou.”

“Dizem que ele foi um traficante importantíssimo na Colômbia. Me falaram que ele é brasileiro, mas antes dos seis meses foi pra lá. Se envolveu com as drogas antes dos quinze, mas nunca usava, só comprava e vendia.”

“Quando a polícia descobriu seu negócio, teve que fugir do país, e agora não pode nem pensar em voltar pra Colômbia, que eles acabam com ele.”

“Assim que ele chegou aqui, iniciou uma pequena empresa, depois de tirar falsos documentos, é claro. Mas enfim, fundou a Homus & Húmus, que como já disse, é fachada para a produção e venda de cocaína. Dizem que também faz lavagem, mas nunca nada foi provado.”

E, Dona Rosa, você não tem medo, não? Assim, com uma vendida bem próxima, um sociopata, um traficante, um viciado, uma escrava por perto, tu não tem medo não? Além do mais, uma senhora como você – quantos anos ela tem?! – não pode ficar desprotegida, não é?

“Bom, meu filho, digamos que eu estou protegida, e que mesmo se eu morrer, a polícia VAI pegar quem me matou. Por hoje é só. Agora, está na hora do adeus, não acha?”

Sem esperar segunda ordem, me levantei e me direcionei à porta, abri, e tive a surpresa de ver que estava um solão sem nuvens, sem congestionamento, sem nada.

Ante à essa nova imagem, prestes a cruzar a porta e já com um pé fora da soleira, tomei coragem, virei e perguntei à Dona Rosa:

-Moça, quantos anos você tem, mesmo?

-Ah, querido, isso não se pergunta a uma dama.

Ela levantou, e calmamente fechou a porta.

Resignei-me com essa “resposta lacônica”, virei-me e saí a passos largos pela rua cheia de musgo.


João Lucas Fernandes de Sá

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